sombras
"Sei que este mundo não vai acabar amanhã. Mas e se acabar? E se este meu julgamento precoce estiver errado e amanhã, bem cedinho, toda esta esfera se desvanecer num milésimo de segundo !?"
Eram estes os pensamentos que ocupavam o Renato, enquanto abria uma cerveja e olhava para a TV, que debitava eloquentemente "no início havia apenas uma pequena porção de matéria altamente concentrada que explodiu..."
Parece que tudo nasceu de uma explosão criadora. E se tudo acabar amanhã numa explosão altamente concentrada ? Bem pelo menos "vai ser bué de desconcertante, acaba tudo e nem aparece na TV..." pensou o Renato e deu por encerrada esta amarga incerteza, em que o Génesis e o Apocalipse se tocavam.
Eram estes os pensamentos que ocupavam o Renato, enquanto abria uma cerveja e olhava para a TV, que debitava eloquentemente "no início havia apenas uma pequena porção de matéria altamente concentrada que explodiu..."
Parece que tudo nasceu de uma explosão criadora. E se tudo acabar amanhã numa explosão altamente concentrada ? Bem pelo menos "vai ser bué de desconcertante, acaba tudo e nem aparece na TV..." pensou o Renato e deu por encerrada esta amarga incerteza, em que o Génesis e o Apocalipse se tocavam.
Mudou de canal e a TV de súbito disse:
-Dêem-lhes um controlo remoto e uma grade de cerveja e ninguém os pára.
Era "Bingo!". Assim de repente, toda a história natural fez sentido; como se uma luz tivesse iluminado e revelado, por fim, o propósito de tão complexa evolução natural. No início havia apenas uma pequena porção de matéria altamente concentrada que explodiu. Depois uma lama, altamente reactiva e biológica, deu origem aos primeiros organismos unicelulares. Apanhando toda a gente despercebida, alguns saem da água (já no formato crocodilo simples)e começam a ganhar pêlo e a subir as árvores...das árvores até ao sofá foi um pulo.
É tão simples! E agora;"dêem-me um controlo remoto e uma grade de cerveja, e ninguém me pára" pensou o Renato, refeito dos momentos apocalípticos, com este sumário mordaz.
Correu para o quarto satisfeito com a sua alegre tirada.
Mas o fatalismo teimava em ser o seu companheiro nocturno. " Mas e se acabar? E se o mundo acabar amanhã, entre uma bola de poeira estelar... num acabar fulminante?!" pensava de novo o Renato, enquanto apagava a luz e entrava na cama.
Apreensivo, passou num ápice de expoente máximo da evolução natural, a uma simples criatura... vergada perante mistérios de que não vislumbrava nem a mais infinita e ridícula parte. Sentia-se, de repente, um pobre e triste átomo, arredado de toda a sabedoria criadora universal.
"As sombras do passado são as sombras do presente" concluía o Renato enquanto, por sobre ele, de olhos bem negros, a noite se agigantava. " O passado é inútil como um trapo...tem pêlo e sobe às árvores".
Eram vozes, almas penadas, que lhe gritavam dentro da cabeça:
"O vento de Hollywood em uivo
A queda do Kremlin
A rádio estática
A noite silenciosa
É um prazer...
O Stalin sorri
O Hitler ri
O Tse-Tung de mão nas costas
O Churchill bate palmas
Do nada depende tudo
O passado é inútil como um trapo
Tem pêlo e sobe às árvores"
Todo o passado eram sombras que cresciam, pela noite escura, debaixo dos móveis do quarto. Eram as esquinas sombrias, eram todas as sombras de Apocalipses passados que cobriam os lençóis.
Mas o fatalismo teimava em ser o seu companheiro nocturno. " Mas e se acabar? E se o mundo acabar amanhã, entre uma bola de poeira estelar... num acabar fulminante?!" pensava de novo o Renato, enquanto apagava a luz e entrava na cama.
Apreensivo, passou num ápice de expoente máximo da evolução natural, a uma simples criatura... vergada perante mistérios de que não vislumbrava nem a mais infinita e ridícula parte. Sentia-se, de repente, um pobre e triste átomo, arredado de toda a sabedoria criadora universal.
"As sombras do passado são as sombras do presente" concluía o Renato enquanto, por sobre ele, de olhos bem negros, a noite se agigantava. " O passado é inútil como um trapo...tem pêlo e sobe às árvores".
Eram vozes, almas penadas, que lhe gritavam dentro da cabeça:
"O vento de Hollywood em uivo
A queda do Kremlin
A rádio estática
A noite silenciosa
É um prazer...
O Stalin sorri
O Hitler ri
O Tse-Tung de mão nas costas
O Churchill bate palmas
Do nada depende tudo
O passado é inútil como um trapo
Tem pêlo e sobe às árvores"
Todo o passado eram sombras que cresciam, pela noite escura, debaixo dos móveis do quarto. Eram as esquinas sombrias, eram todas as sombras de Apocalipses passados que cobriam os lençóis.
"Toda esta tripe deve ser provocada pela cerveja e pela TV" suspirava atónito o Renato, sem sossego. Era o medo, o não querer morrer na condição de átomo rídiculo e solitário!
Acendeu a luz e com o fugir das sombras, sentiu, lentamente, a calma a voltar. Enfim, lembrou-se do que lhe diziam quando era miúdo e o atormentavam fantasmas ou monstros de quarto escuro; "...repara que não deves ter medo do escuro, porque na verdade é o escuro que tem medo de ti. Vê agora, Renato, como o escuro foge de ti quando acendes a luz. O escuro esconde-se, cheio de medo, debaixo da cama, debaixo dos móveis...", dizia-lhe a mãe, enquanto acendia a luz. E ele comprovava, com grande alívio, que era verdade; assim que a luz se acendia o escuro fugia rapidamente, como por medo, para debaixo de onde se pudesse esconder à pressa. O escuro tinha medo dele.
Adormeceu, por fim e pediu um desejo; que o dia seguinte fosse de luz e que essa luz viesse como um abraço para as sombras da solidão.
Acendeu a luz e com o fugir das sombras, sentiu, lentamente, a calma a voltar. Enfim, lembrou-se do que lhe diziam quando era miúdo e o atormentavam fantasmas ou monstros de quarto escuro; "...repara que não deves ter medo do escuro, porque na verdade é o escuro que tem medo de ti. Vê agora, Renato, como o escuro foge de ti quando acendes a luz. O escuro esconde-se, cheio de medo, debaixo da cama, debaixo dos móveis...", dizia-lhe a mãe, enquanto acendia a luz. E ele comprovava, com grande alívio, que era verdade; assim que a luz se acendia o escuro fugia rapidamente, como por medo, para debaixo de onde se pudesse esconder à pressa. O escuro tinha medo dele.
Adormeceu, por fim e pediu um desejo; que o dia seguinte fosse de luz e que essa luz viesse como um abraço para as sombras da solidão.
Lá fora o dia nascia, entre cores de lusco-fusco. As sombras escondiam-se, pouco a pouco, para debaixo dos carros, das esquinas dos prédios, das pedras da calçada.
º

Fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
“A Criança Em Ruínas” de José Luís Peixoto